PT elege filhos da classe trabalhadora – por Herlon Miguel

Num país onde os filhos da elite seguem controlando partidos, bancos e veículos de comunicação, é o Partido dos Trabalhadores que, mais uma vez, reafirma sua identidade ao eleger filhos da classe trabalhadora para suas presidências estadual e municipal na Bahia. Tássio Brito, com trajetória forjada no movimento estudantil e na relação com o MST, e Ana Carolina, mulher negra com forte atuação no movimento estudantil e em Salvador, representam não apenas uma vitória eleitoral, mas uma escolha simbólica e política: a de manter o partido enraizado na base. Só o PT, entre os grandes partidos brasileiros, tem a ousadia de confiar a direção partidária àqueles que vêm do povo e que, por isso mesmo, sabem o que é construir política com os pés na rua. Ambos são filhos de trabalhadores que não herdaram o poder; ao contrário, enfrentaram as dificuldades de serem pessoas negras disputando espaço no interior do próprio partido.
A eleição de Ana Carolina, com 75% dos votos em Salvador, também aponta para uma nova fase do PT na capital: mais próxima dos bairros, mais conectada com as mulheres negras, com os territórios periféricos e com os movimentos sociais urbanos. Não se trata apenas de um novo nome, mas de um novo método. Sua eleição é um marco para a política em Salvador e deve trazer uma forma mais horizontal de gestão, com diálogo amplo e valorização das lutas locais. A capital baiana é um dos maiores desafios eleitorais e simbólicos para a esquerda — e a leveza de Ana pode ajudar a reposicionar o PT no coração do povo soteropolitano. Ela chega sem rejeições e com vontade renovada.
No caso de Tássio Brito, a crítica à sua presença na gestão anterior como secretário de Finanças foi uma das táticas da oposição, mas revelou limites. A experiência mostra que, mesmo dentro de um mesmo grupo político, quem ocupa a presidência é quem define os rumos estratégicos. Assim como vimos nos diferentes estilos e prioridades entre os governos Lula e Dilma, dentro do PT da Bahia também há diferenças de postura, de ritmo e de visão. Reconhecer isso é parte do amadurecimento político do partido. Com Tássio, há expectativa de um novo tempo, com mais diálogo com a base, valorização dos quadros jovens e impulso às novas formas de organização popular.
Naturalmente, todo processo eleitoral envolve disputas, alianças e até algum grau de artificialidade — o que é reclamado hoje já foi ontem e será também amanhã. Isso não anula, no entanto, a legitimidade de uma vitória construída com ampla maioria: 73% dos votos para Tássio Brito na direção estadual e 75% para Ana Carolina em Salvador, a maior votação proporcional da história do PED na capital. Essa escolha expressa uma síntese política firmada por maioria expressiva, que apostou na renovação de métodos, no fortalecimento da militância e na reconstrução de uma presença política mais viva e enraizada.
Mas há uma missão essencial que pesa sobre os ombros de Ana Carolina e Tássio Brito: a missão de unificar o PT. Não se trata de apagar divergências, que são parte viva da história do partido, mas de criar espaços reais de escuta, formulação coletiva e reconstrução de vínculos políticos. A unidade não é um discurso pronto; é um processo construído no cotidiano, na partilha das decisões e no reconhecimento das diferenças. A condução política agora exige grandeza, paciência e uma aposta no que o PT tem de mais potente: sua diversidade interna e sua militância.
É nesse ponto que cabe uma crítica fraterna e necessária: o PT da Bahia precisa, urgentemente, diminuir os níveis de intervencionismo sobre seus dirigentes eleitos. A autonomia da direção partidária deve ser respeitada, mesmo que em diálogo com os diferentes setores da legenda. Não se pode esperar inovação se tudo for tutelado. Além disso, há uma demanda urgente de renovação da esquerda baiana nos parlamentos. Ana e Tássio precisam liderar o processo de construção de uma nova geração de vereadores, deputados e deputadas que representem a Bahia real, com mais mulheres negras, jovens da periferia, lideranças indígenas, LGBTQIA+ e trabalhadores urbanos e rurais. Isso exige ousadia e método.
O partido também precisa atualizar sua agenda de organização popular. Bairro por bairro, é preciso voltar a ter base. Isso implica disputar a narrativa da esperança contra a política do medo que a extrema-direita tem espalhado, sobretudo entre a população evangélica. Implica também fortalecer a presença da esquerda nas redes, onde o PT ainda atua de maneira desorganizada e defensiva. E, mais do que nunca, o partido precisa propor uma nova agenda sindical: não basta defender direitos do século XX, é preciso enfrentar o poder das big techs, o trabalho por aplicativo e os novos modos de exploração digital. Isso exige uma nova pedagogia política e um novo programa.
Por fim, é hora do PT sonhar grande e realizar. Que se fortaleçam ações de massa, com alcance popular real, como festivais culturais, encontros regionais, formações políticas descentralizadas — inclusive por educação a distância — que democratizem o saber. Que a política não seja só debate de cúpula ou disputa de aparato interno. Que seja também afeto coletivo, organização, ousadia e compromisso com as lutas do povo. Tássio e Ana não apenas podem, como devem conduzir esse novo tempo. A história os chama e a militância espera.
É fundamental também, parabenizar as pessoas, muito sérias, que disputaram a maior eleição da história do PT da Bahia.
O mais simbólico de tudo isso é lembrar que, num país em que os filhos dos trabalhadores são, em regra, excluídos das instâncias de decisão e poder, o PT ainda é capaz de elegê-los. Não há outro grande partido nacional que tenha essa coerência histórica. Em nenhuma outra legenda seria possível que uma mulher negra periférica ou um jovem do ligado ap MST chegassem, com legitimidade e voto, à presidência partidária. O PT segue sendo o instrumento político dos de baixo — e essa é uma escolha que deve ser reafirmada, defendida e celebrada.
Herlon Miguel é administrador e ativista da cultura, comunicação e do antirracismo.
Este artigo foi publicado originalmente no Portal M!